Colorado desde sempre, meia agradece ao Tricolor pela preparação que recebeu para a vida e lembra que amigos tiveram outro caminho
Não sai da cabeça de Paulo César Tinga a visão do que aconteceu com seus amigos de infância, com aquela turma que corria descalça atrás de uma bola de futebol pelas ruas do bairro Restinga, em Porto Alegre. Os pensamentos dele não param de receber marteladas de realidade com a lembrança de que a maioria absoluta daquela gurizada foi parar atrás das grades ou dentro de um caixão, por mais crua que seja a imagem, por mais dolorosa que ela seja. Tinga foi salvo. E poderá, daqui a duas semanas, vestir a camisa do time do coração dele em um Mundial de Clubes.
Aquele Paulo magrelo que corria atrás de uma bola pela Restinga já era coloradaço. Mas uma jogada do destino fez com que ele encontrasse no Grêmio toda a base para uma vida boa, todo o asfalto para um caminho certo. O Inter, nos testes para a criançada, não quis saber de Tinga. O Grêmio quis. E lá foi ele, todo orgulhoso, dar a vida pelo azul, preto e branco – retribuir, com suor, a oportunidade que recebia nos campos do Olímpico.
O Grêmio mora no coração colorado de Tinga, por mais estranho que pareça. Aos 32 anos, o jogador não esquece o passado, mas ressalta que seu lugar sempre foi o Beira-Rio. Autor do gol do título da Libertadores de 2006, o jogador agora terá a chance de ser campeão do mundo. Ele será titular em Abu Dhabi e, até lá, tenta recuperar o ritmo de jogo, processo atrapalhado pela reincidência das lesões musculares.
Tinga concedeu entrevista exclusiva ao GLOBOESPORTE.COM no gramado do Beira-Rio. Em 30 minutos de conversa, o jogador analisa a revolução que o futebol causou em sua vida, fala sobre a identificação com o Inter e traça planos para o futuro. Confira, abaixo, a íntegra do bate-papo com um dos maiores ídolos da torcida colorada.
Lembro de uma matéria que o Régis Rosing fez com você lá em 1997, quando você começava sua carreira profissional no Grêmio. Ao pensar que poderia dar uma vida melhor para sua família, você chorava sem parar. Imagino a revolução que houve na sua vida de lá para cá...
Mudou tudo. Minha vida é um milagre. Eu acredito em milagres, e minha vida é isso. Hoje, eu olho, vejo tudo que aconteceu na minha vida, as coisas que conquistei, as coisas que tenho, como eu era, o que eu era, o que aprendi. Agradeço primeiramente a Deus e depois ao futebol. Por causa do futebol, muitas vidas foram mudadas. A minha foi uma. Eu fui educado, cresci como pessoa, aprendi a falar, a me comportar, a me impor, tudo por causa do futebol. Se souber aproveitar o futebol, o jogador consegue aprender. Falo sobre aprender a falar outras línguas, saber viver em outros lugares, conviver com pessoas que eu nunca conheceria sem o futebol. Você pode, com o futebol, crescer como ser humano. Eu consegui isso.
Você fala que sua vida é um milagre. Por quê? Você seria diferente sem o futebol?
Acredito que as chances de ser quem eu sou hoje, de ter as coisas que tenho, e não falo somente de coisas materiais, diminuiriam. Olho pelos números. De 90 a 99% das pessoas que se criaram comigo, ou estão mortos, ou presos. Falo de amigos que andavam diretamente comigo. É por isso que acho que é um milagre sair da Restinga e conseguir me tornar um jogador. Mas é mais do que isso. Você pode se tornar um jogador e não se tornar um ser humano. Pode usar o futebol e ir por outro lado, como acontece às vezes. Eu poderia ter aproveitado o futebol e caído por outro lado. Quando falo em milagre, é isso: consegui ser um atleta de bom nível, ultrapassando aquilo que eu imaginava, e, acima disso, me tornei um ser humano, um pai de família, um bom filho.
Tua turma de infância tomou outro caminho, é?
De 90 a 99%, cara.
Isso deve te entristecer, imagino.
Lembro disso direto. Quando não lembro, sou lembrado. Tenho contato. Quando um ou outro sai da prisão, quando escuto que um morreu, são coisas que me lembram que Deus foi muito bom comigo, que me deu uma direção diferente.
Você era colorado de infância, não é?
Eu era colorado. Minha família era de colorados. Sempre fiz teste no Internacional. Para mim, é um orgulho ser colorado desde pequeno, vir em jogos do Inter, e ter me formado no Grêmio. Mesmo sendo colorado, tenho esse orgulho. Respeito muito o Grêmio porque fui formado, como ser humano, lá dentro. Foi no Grêmio que comecei a estudar, que comecei a entender como é a vida. O futebol pode educar uma criança, um adolescente. Antes de chegar no Grêmio, eu só jogava pelada na rua. Quando cheguei lá, comecei a me deparar com regras. Essas regras, transportadas para a vida, te mostram que existem limites. Se a bola sai, é porque existe um limite. Hoje, consigo pensar e ter a certeza de que fui educado dentro do Grêmio. Tenho esse orgulho de, mesmo sendo colorado, ter sido formado lá e hoje jogar no Inter, que era um sonho desde criança.
Não era estranho para você, como colorado, jogar no Grêmio?
Jamais. O Grêmio me deu uma oportunidade na vida. A partir do momento em que eles me abraçaram, eu abracei a causa também. Defendi o Grêmio da mesma maneira como defendo o Inter. Hoje, jogando no Inter, sabendo da rivalidade, não posso mentir. Procuro falar sempre a verdade. Eu abraçava a causa. Jogava com a mesma vontade que jogo hoje, mesmo sendo colorado. Foi por isso que tive conquistas no Grêmio e ganhei respeito. Muita gente sabia disso. Mas eu jogava Gre-Nais como se fossem a última chance. Gre-Nal, desde a época de amador, se perdia, muita gente ia embora. A gente dava a vida. Se não tivesse começado lá, talvez não seria quem sou hoje. Eu não me canso de ser feliz, mas sou muito realizado. Quero jogar por muito tempo ainda, mas sou realizado de poder ter sido formado no Grêmio e depois realizar isso também no meu clube do coração. É mais uma prova de que minha vida é um milagre.
Você tinha planos de jogar no Inter? Algo te dizia que isso ia acontecer?
Sim. Tinha, sim. Eu nem vou comentar o nome do jogador, mas eu e esse jogador tínhamos uma questão quando jogávamos. O Beira-Rio ainda tinha a coreia (setor mais popular do estádio, hoje inativo, em que torcedores viam o jogo de pé), e era só conhecido, cara. E eu pelo Grêmio. Eu e mais um ou outro jogador comentávamos que jogar aqui deveria ser do caramba. A gente dizia: “Pô, só conhecido, os caras devem ficar loucos! Um dia a gente vai jogar aqui!”. Eu tinha um pouco de certeza de que iria jogar no Internacional. Eu via isso como algo para grandes jogadores. Pensava que todos os caras que jogavam bem foram para o outro time e conseguiram jogar. No Grêmio, eu tinha o exemplo do Mauro Galvão. Ele foi criado no Inter, foi o melhor zagueiro aqui, foi o melhor zagueiro lá. Eu via o respeito que ele tinha nas duas torcidas. Eu conversava muito com ele. Ele me inspirava. Lembro que íamos para os jogos e vinham torcedores do Inter pedir autógrafo para ele. Eu ficava imaginando se aquilo seria possível. Não imaginava que seria tão possível. Cheguei aqui e consegui títulos que mudaram totalmente a história do Inter.
Essa é a questão. Você não só realizou esse plano de jogar no Inter, como participou ativamente da construção de um clube maior. Teu gol na final da Libertadores de 2006 foi um marco da mudança na história do clube. O que representa isso para ti?
É por isso que agradeço tanto. É como se fosse um prêmio: você trabalhou muito bem no Grêmio, mas no teu clube do coração, você vai ter que trabalhar melhor ainda. Foi o que aconteceu. Se eu ganhasse um título nacional, como aconteceu no Grêmio, talvez não fosse tão importante. Por eu ser colorado, tinha que ser algo maior.
Você imaginava que conseguiria?
Não imaginava. Quando vim para cá, o Inter não disputava Libertadores. Não imaginava que fosse conseguir tanto. A satisfação é muito maior por ter chegado no clube onde eu queria jogar e ter conseguido um título com mais expressão do que consegui no Grêmio.
Você não acha que poderia ter tido experiências maiores na Seleção Brasileira?
Cara, eu acredito que sim, que poderia ter participado mais, mas sei que foi por culpa minha. Nunca tive essa ambição.
Não? Por que não?
Para mim, conquistar minhas coisas aqui já era satisfatório. Nunca almejei ser um jogador de Seleção. Nunca. Fui para a Europa duas vezes, mas não pensava em sair daqui. Queria jogar bem na minha terra. E consegui. Para mim, o maior marco não foi ter ido para a Seleção ou ter jogado na Alemanha e em Portugal. Para mim, o maior marco da minha carreira foi ter jogado nos dois maiores clubes do meu Estado. Falo de coração. Minha maior satisfação foi ter jogado no Inter e no Grêmio.
Você começou como ponteiro. Depois, virou volante e meia. Afinal, qual é tua posição?
Esse foi um diferencial da minha carreira. Pude jogar em diversas posições. Isso me colocou, na maioria das vezes, como titular. Consegui agradar treinadores por sempre poder me encaixar em algum esquema. Foi a grande virtude da minha carreira. Comecei jogando como atacante e depois de meia. Fui para o Botafogo como atacante. Lá, comecei a treinar nos dois toques quase como zagueiro, dando porrada. Aí o Joel Santana disse: “Você vai jogar de volante no meu time”. E eu respondi: “Nasci volante”. Estava louco para jogar, né, cara? Tinha acabado de chegar. Foi aí que minha carreira teve um crescimento. Fui para a Seleção, voltei para o Grêmio, fui para a Europa, vim para o Inter. O grande diferencial da minha carreira foi ter jogado de volante. Se eu fosse meia ou atacante, não seria nem mais um: seria menos um. Para mim, meia e atacante, para ter alto nível, precisa fazer gol. E eu fiz mais gol como volante do que como jogador avançado. Agradeço muito a essa passagem pelo Botafogo. Foi um diferencial. Agradeço muito ao Joel, porque poucos sabem que foi ele quem me colocou nessa função. Tenho um respeito muito grande por ele. Foi a partir dessa mudança que me tornei um jogador com uma visibilidade maior.
Na final da Libertadores de 2006, você faz o gol e é expulso na comemoração. Entre o instante em que você é expulso e o apito final, o que passou por tua cabeça? Onde você se escondeu naqueles minutos finais?
Eu fiquei na sala de musculação. Fiquei pedindo a Deus que me ajudasse. Tinha uma certeza muito grande de que nós iríamos ganhar aquele jogo. Você vê como é o futebol... É por isso que não me iludo. Não me empolgo com o futebol. Se o São Paulo virasse o jogo, muitos diriam que foi por causa da minha expulsão. Essa experiência de ficar fora, sem poder fazer nada, no limite entre ter feito o gol do título e ter sido o cara que tirou o título, me leva a pensar nisso. Quando acabou o jogo, eu comemorei, mas, ao mesmo tempo, tive um ensinamento de que assim é a vida, de que assim é o futebol, de que não dá para se empolgar. Aprendi muito com aquele momento. Aprendi mesmo. Nem sei se deveria comentar, mas se você prestar atenção nas comemorações, sou um cara muito reservado. Quero ganhar sempre, mas quando acaba o jogo, procuro ir para casa. Eu penso como seria ir para a final e não ganhar. Pego minha família e vou para casa. Penso como seria se eu perdesse. Isso me ensinou. A vitória e a derrota são muito próximas. Fui para casa feliz demais, mas sabendo que o futebol é assim. Por um lance, eu poderia não ser o que sou.
Você se arrependeu de ter saído do Inter antes do Mundial de 2006?
Não. Eu não vi o jogo. Estava viajando para cá de férias. Quando cheguei aqui e vi toda a festa, pensei que poderia estar ali. Mas eu precisava daquela saída. O que mais me acrescentou na vida foi ter jogado na Alemanha, em um clube como o Borussia (Dortmund), um negócio fora de série. Não me arrependo. Ao mesmo tempo, tinha a certeza de que se fosse para acontecer comigo, aconteceria. Até comentei com o Bolívar que se alguém nos dissesse que podíamos ir embora, porque quatro anos depois voltaríamos e jogaríamos o Mundial, ninguém acreditaria. Nem eu, nem o Bolívar, nem o Sobis. Às vezes, penso no Jorge Wagner, que está no São Paulo. Se ele pudesse estar aqui, seria legal, porque foi um cara que nos levou diretamente ao Mundial e não jogou. Dos que saíram na metade, só falta o Jorge Wagner. É um cara que merecia estar no Mundial. Mas se dissessem isso, ninguém iria acreditar. Agora, temos a oportunidade. É algo incrível.
Você acha que vai ser campeão do mundo? Não tenho dúvida de que você quer muito isso, mas você sente que vai acontecer?
É difícil de responder. Pode soar como arrogância. Sei o que acho, mas não gostaria de responder, porque poderia soar como arrogância, algo assim. Mas sei o que acho. Estou muito consciente em relação ao que penso sobre o Mundial. A alegria é grande por ter essa possibilidade.
Você falou que quer ter muitos anos de futebol pela frente. Quantos?
Acho que mais uns quatro ou cinco anos. Mas tem que ser em alto nível. Ninguém vai me parar. Quando achar que não estou em alto nível, eu mesmo vou parar. Conheço meu potencial, a velocidade do futebol. O fato de eu vir de um país que é correria, onde não tem falta, me dá uns anos a mais. Acredito que jogo mais uns quatro anos.
E pensa em transferência ainda?
Já fui três vezes para fora do país. Meu pensamento é permanecer no Inter. O futebol é muito dinâmico, mas meu pensamento é jogar muito tempo aqui no Inter ainda.
Para encerrar a entrevista, Tinga, eu gostaria de voltar à primeira pergunta. Em toda essa mudança na tua vida, a quem você precisa agradecer? Quais foram as pessoas fundamentais em tudo isso?
Primeiro, Deus, por me colocar essas pessoas no caminho. Tenho que pensar em minha mãe, pelo desdobre que fez para criar eu e meus irmãos. Penso diretamente nela por se desdobrar: vai para lá, trabalha de madrugada, volta. Também agradeço a minha esposa, que está comigo há 13, 14 anos. Dificilmente alguém fica fora do país sem ter uma parceria. Tive minha esposa como parceira. Como treinadores, foram muitos: Tite, Joel, Muricy, pô, muita gente que colaborou com uma palavra, que talvez poderia achar que não teria efeito nenhum, mas que, para o jogador, faz uma diferença muito grande. Foi assim com o Felipão e com o próprio Celso (Roth), com quem trabalhei em 98. Tive um treinador no amador, chamado Rogério Zimmerman, que foi muito importante para mim. Tive um padrinho no Grêmio, o Ben-Hur Marchiori, um delegado, que me ajudou em momentos de dificuldade. São muitas pessoas, mas, diretamente, é minha mãe e minha esposa.
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